23/03/2009

A sorte

Ele chegou a se perguntar por alguns segundos, mas percebendo a lentidão de seus desejos insólitos, ele tira uma carta de sua mão e a descarta na mesa. O lado oposto não espera, rapidamente retruca com sua mais precisa escolha. Não havia mais tempo. O sinal bate marcando o fim da partida para essas quatro mãos. Cabe então ao juiz decidir, apoiado do júri popular. Mas já estava certo, e ele sai da mesa derrotado, sob uivos roucos e ferozes.

Não podia mais viver, a cidade tinha lhe roubado as mais preciosas tentativas, todas descartadas como suas próprias cartas rasgando o chão por onde andava. Há três dias tinha sido despejado e vagava sozinho pelas ruas com medo de adormecer acordando morto e roubado. Decidiu gastar seu último centavo em algum boteco nacional, onde pudesse dormir numa mesa em algum canto escuro.

Não tinha motivos para estar a tanto tempo perdendo. Não entendia em que jogada que sua sorte mudou. Era famoso por cartadas excepcionais e partidas históricas, mas certo dia não conseguia mais vencer. Cansou de tentar achar uma resposta e culpando a tudo aos poucos foi destruindo o seu redor. Bebia, e não bebia pouco. Estava criando um câncer de pulmão, que rangia ao respirar, mas acendia um cigarro atrás do outro. Não se importava, tinha gastado toda sua fortuna, ganhada através dos anos de jogo, a fim de recuperar a sorte perdida. Mas foi em vão, só se deu conta de sua temível derrota quando foi gentilmente convidado a se retirar da Alta Roda Social dos Jogadores de Cartas, compostas apenas por altas contas bancárias.

Para um homem com sua reputação foi um vexame. Os que invejavam sua pessoa fizeram questão de rir por suas costas e por fim todos acabaram por esquecê-lo, transformando-o numa triste memória resgatada em exemplos de derrota. Ele praguejou. Bebeu até ser internado num hospital samaritano que o salvou de um coma. Na ressaca decidiu que não ia mais beber e então começou a jogar em bares populares para tentar ganhar algum dinheiro. Por fim tudo que apostou perdeu, seu carro, seus móveis, sua casa, até sua coleção de calcinhas. Então voltou a beber. Começou a exagerar no tabaco, cada vez mais barato. Mendigava alguns trocados e de vez em quando ganhava alguma partida insignificante apostada com algum bêbado ou alguém empolgado. Conseguiu um emprego numa fábrica de carvão, e alugava um quarto no sótão de uma velha hospedaria. Em poucas semanas sem pagar o aluguel conseguiu o dinheiro para jogar no campeonato aberto em que tinha acabado de perder, restando-lhe apenas cinco reais.

Andou muito até um boteco distante onde não era conhecido. Sentou numa mesa bem escondida e pediu meia garrafa de pinga. Bebeu analisando o lugar e sentindo-se confortável, adormeceu. Foi acordado pelo calor das chamas que queimavam ao seu redor. O bar estava mexido e com sinal de briga e tudo estava pegando fogo. Não conseguia avistar a saída que queimava surdamente. Vendo-se preso em meio às chamas, exclamou “afinal, mas que sorte” e bebeu mais um gole de pinga enquanto lentamente esquentava.

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